A vida acontece e se torna real/sentido através das palavras. Ler Herta Müller é um exercício semiótico que, de forma universal, traduz a memória da perseguição ditatorial. A escritora romena, naturalizada alemã, atravessou uma vida conturbada: o pai, um romeno de origem alemã, fez parte da SS, as piores tropas nazistas. A mãe sofreu uma deportação que a fez muda de medo. Herta cresceu no silêncio velado de uma ditadura, e ainda assim estudou letras germânicas e literatura romena pela Universidade de Timisoara. Acabou emigrando para a antiga República Federal da Alemanha, por se recusar a colaborar com o serviço secreto romeno. Em meio a esta memória, ameaças de morte e amigos ‘suicidados’, Herta Müller, para além de todas as expectativas, foi agraciada com o Nobel de Literatura no ano de 2009.
Em sua obra “O rei se inclina e mata” (Der König verneigt sich und tötet, trad. Rosvitha Friesen Blume – São Paulo: Globo, 2013), Herta desfia uma narrativa de vida fragmentada em ensaios que remetem à dor e a palavra. Os jogos de poder, mediados pelos significados (proibições na ditadura, silêncio e medo), são explicitados por uma voz que medita diante da língua romena em comparação à língua alemã. Para os falantes do português a tradução foi certeira: não há perda da noção de ausência e presença de significantes para as palavras elencadas pela autora. A escrita de Herta é feita em alemão, mas considera os vernáculos romenos em seus significados primeiros diante das situações, e os direciona para expressões que configuram eventos específicos. Há uma desconstrução do sentido habitual das palavras, além de combinações que reinventam as circunstâncias de uma determinada imagem.
A sentença “Não posso me tornar aquilo que não existe em meu idioma”, permeia todas as considerações da obra. Dividida em nove ensaios, o destaque se dá para o ensaio-título “O rei se inclina e mata”, que justifica a estranheza desta imagem, e evidencia o caráter arrebatador da escrita de Herta. Há um terror lírico nas palavras da autora, uma naturalidade em imagens pouco habituais aos olhos de quem não viveu uma situação extrema. A especificidade dos acontecimentos (corro o risco aqui de cair no lugar comum) a faz universal. Há a ‘luta com palavras’, o relato cru e o suave ‘perceber a vida’.
Não costumo resenhar um livro entregando de imediato trechos da obra, mas sim traduzindo um recorte das possíveis sensações a serem compartilhadas. Minha leitura (acredito que todas as leituras são assim) é um diálogo em que evoco as leituras passadas, as vivências. No caso de “O rei se inclina e mata” o eixo palavra-realidade-memória chega a ser palpável e a figura do rei (a título de pesquisa um retrato do ditador romeno Nicolae Ceauscescu) é suave, reside nas lacunas, no lirismo, na crueldade com que Herta faz a poesia de seus ensaios: de considerações literárias a relatos de uma violência que se entranha na carne.
O título do terceiro ensaio do livro explicita bem o que aqui tento mostrar: “Se nos calamos, tornamo-nos incômodos – Se falamos tornamo-nos ridículos.” Herta escreveu no limite entre o incômodo e o medo de expor o cerne. Na fluidez de narrativas ensaísticas (talvez o termo venha a sanar uma possível conceituação do que Herta escreve nesta obra), o tempo se aproxima daquilo que todos vivenciamos nesta efêmera existência, e que a própria autora expõe em entrevista ao site O Globo:
“Acho que nenhum dos meus livros é cronológico. O que é cronológico? A vida não acontece apenas em uma linha ou direção de percepção, como nas recordações. A minha vida funciona assim. Não é um truque literário.” (O Globo, 28/07/2011)
Fica então o convite: 213 páginas de beleza, dor, silêncio, recusa e coragem.